A recente pauta nacional em torno do Projeto de Lei n° 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, é mais um dos aspectos a ser observado à luz do debate público e suas implicações no ambiente digital. Há controvérsias, porém, quanto à sua eficácia, inclusive em desacordo com a LGPD. Mesmo com a retirada de pauta para votação, ocorrida no último dia 02, mister compreender qual é, de fato, a correlação entre os mencionados institutos.
Alega-se que a nova lei busca combater à desinformação, ao discurso de ódio e a outros conteúdos criminosos no ambiente digital. Por outro lado, apontam-se riscos de as novas regras ferirem a liberdade de expressão, bem como de enevoar o ambiente digital e suas diretrizes, com afronta à ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) e princípios da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).
O PL, de fato, busca atribuir responsabilidade às plataformas digitais quanto aos conteúdos ilícitos ou ofensivos postados por seus usuários, citando por diversas vezes em seu relatório o Digital Services Act (DSA), aprovado no fim do ano passado pela União Europeia.
Assim como a LGPD, o projeto visa tratar a privacidade e a segurança dos dados digitais, buscando atender às necessidades atuais do mundo digital e abordar as preocupações crescentes sobre o uso inadequado das informações pessoais dos usuários na internet, garantindo que as pessoas tenham controle sobre seus dados pessoais e que possam navegar na internet sem serem expostas a conteúdos falsos ou maliciosos.
Após a migração do centro das discussões políticas para a Internet, as redes sociais tornaram-se uma extensão da realidade, bem como, em contrapartida, um dos pilares da desordem informacional. Na mesma medida, os dados pessoais são o combustível que move a rede algorítmica de distribuição de informações nas redes sociais, e as big techs coletam e analisam os dados pessoais dos seus usuários, a fim de construir modelos de predição e identificar tendências de comportamento, atraindo o marketing direcionado. Daí a interseção a ser pormenorizada neste artigo.
O PL propõe, por exemplo, a criação de um cadastro nacional de usuários de redes sociais e serviços de mensagem privada, o que poderia exigir o armazenamento de dados pessoais sensíveis dos usuários. Essa coleta e armazenamento de dados deveriam ser feitas em conformidade com a LGPD, garantindo a privacidade e a segurança das informações.
Também é proposto o estabelecimento de regras quanto à proteção de dados pessoais, atribuindo competências de regulamentação, fiscalização e aplicação de sanções à “entidade autônoma de supervisão”, levantando a possibilidade de conflito com as competências da ANPD previstas na LGPD e a eventual criação de um novo órgão regulador ou a atribuição de competências a outra entidade, o que pode ter como efeito a fragmentação regulatória e a sobreposição da ANPD, responsável por nortear, através da LGPD, o uso seguro, ético e privado dos dados pessoais, cuja proteção foi recentemente incluída no rol de garantias fundamentais.
Já o caráter punitivo do PL das fake News, em confronto com o intento primordial educativo da LGPD, pode exigir que as plataformas digitais forneçam informações mais detalhadas sobre como esses dados são utilizados para o compartilhamento de notícias falsas, tendo como principais alvos as grandes empresas do ramo tecnológico.
Esse e mais temas que estão previstos na LGPD e sob a tutela da ANPD, foram abordados pelo setor empresarial, representado por grandes Associações de Classe do país, dentre elas a ANPPD e a FECOMÉRCIO/SP, em manifesto pela segurança jurídica e em desacordo com o PL das fake news, uma vez que feriria diretamente a LGPD em pontos nevrálgicos, por pretender legislar sobre temas relacionados.
As entidades defendem a necessidade de se manter a centralidade da LGPD e da ANPD quanto ao tema “proteção dos dados pessoais” como medida necessária e essencial para a segurança jurídica e harmonização do ambiente regulatório nacional, reconhecendo a importância da discussão sobre novas normas voltadas a combater a disseminação de informações falsas na internet, e mitigando o risco de insegurança à LGPD, amplamente debatida no processo legislativo e social.
Atualmente, conforme o Marco Civil da Internet, as big techs não têm responsabilidade pelo conteúdo criado por terceiros e compartilhado em suas plataformas. Dentro desse princípio, as empresas só são obrigadas a excluir conteúdos impróprios em caso de decisão judicial.
Em caso de aprovação do PL, as plataformas poderão ser responsabilizadas civilmente pela circulação de conteúdos que se enquadrem em crimes já tipificados na lei brasileira, sem os parâmetros de proteção do Marco Civil da Internet e com as novas ameaças de multas, estímulo à remoção de discursos legítimos, resultando, possivelmente, em um bloqueio excessivo e uma nova forma velada de censura. Entende-se, portanto, que a linha tênue entre a benevolência no dever de proteção do ambiente público e o exagerado amontoado de entraves às plataformas digitais carrega, obviamente, diversas controvérsias. O consenso da necessidade de atitudes para conter a disseminação de notícias falsas, discurso de ódio e mensagens criminosas, bem como o do uso indiscriminado dos dados pessoais dos usuários pode e deve ser alinhado, com observância ao cumprimento da legislação já vigente e sua utilização de acordo com os parâmetros em construção.
– André Garcia Filho