É possível a participação de empresa em Recuperação Judicial em processo licitatório?

O instituto da recuperação judicial possui como pilares os princípios da preservação da empresa, consubstanciado no artigo 47 da Lei n° 11.101/2005 (LREF), que guarnecem os fundamentos que devem nortear a condução do processo dando suporte à empresa viável, a função social e o estímulo à atividade econômica.

Nesse viés, a circunstância de a empresa se encontrar em recuperação judicial, por si só, seria impeditivo para contratação com o Poder Público, ainda que não seja dispensada da apresentação das certidões negativas de débitos fiscais?

Conforme preconiza o artigo 31 da Lei n° 8.666/93 (Lei de Licitação), não é necessária a apresentação da certidão negativa de recuperação judicial para a participação de empresas em recuperação judicial em procedimento licitatório, mas, sim, certidão negativa de falência e concordata.

Logo, não há que se confundir certidão negativa de falência e concordata, exigida no mencionado artigo 31, inciso II, da Lei de Licitação, com certidão negativa de recuperação judicial, mesmo que a Lei de Recuperação Judicial e Falência tenha realizado tal substituição entre os institutos jurídicos.

Mas, o assunto não é tão pacífico assim na doutrina e jurisprudência.

Há, na doutrina, quem entenda que os efeitos da concordata sobre a contratação administrativa devem ser aplicados à recuperação judicial, porquanto haveria a presunção de insolvência da empresa em crise. Desse modo, empresas em procedimento recuperatório não poderiam participar de certames públicos. Nesse sentido, é a lição de Marçal Justen Filho (in “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”. 16ª Edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014; pág. 638).

Em entendimento diverso, existe corrente doutrinária no sentido de que, se a Lei de Licitações não foi alterada para substituir certidão negativa de concordata por certidão negativa de recuperação judicial, não poderia a Administração passar a exigir tal documento como condição de habilitação, haja vista a ausência de autorização legislativa (NIEBUHR, Joel de Menezes in “Licitação Pública e Contrato Administrativo”. 4ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2015; pág. 447).

Assim, as empresas submetidas à recuperação judicial estariam dispensadas da apresentação da referida certidão.

Vale lembrar que norma restritiva, como é o caso do art. 31 da Lei nº 8.666/1993, não admite interpretação que amplie o seu sentido, sobretudo quando se tratar de restrição de direitos, à luz do princípio da legalidade.

Dentro desta perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em recente julgado da 2ª Turma (Resp n°1.826.299/CE), reforçou o entendimento de que “a exigência de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial deve ser relativizada a fim de possibilitar à empresa em recuperação judicial participar do certame licitatório, desde que demonstre, na fase de habilitação, a sua viabilidade econômica”.

O encaminhamento do entendimento acima, pelo STJ, reforça o escopo primordial da Lei nº 11.101/2005 (art. 47), que é “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

Diferentemente da concordata, cujo objetivo precípuo era o de assegurar a proteção dos credores e a recuperação de seus créditos, o processo de recuperação judicial busca a proteção da empresa que se encontre em dificuldades econômicas.

Como bem observa Celso Marcelo de Oliveira, “a preocupação com o papel social que a empresa exerce na sociedade é a base que justifica todos os esforços no sentido de dar à empresa uma oportunidade de recuperação” (in “Comentários à nova Lei de Falências”. São Paulo: Ed. IOB Thomson, 2015; pág. 224).

Sendo assim, a interpretação sistemática dos dispositivos das Leis nºs 8.666/1993 e n. 11.101/2005 leva à conclusão de que é possível uma ponderação equilibrada entre os princípios nelas imbuídos, pois a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica atendem também, em última análise, ao interesse da coletividade, uma vez que se busca a manutenção da fonte produtora, dos postos de trabalho e dos interesses dos credores.

Com efeito, negar à pessoa jurídica em crise econômico-financeira o direito de participar de licitações públicas, única e exclusivamente pela ausência de entrega da certidão negativa de recuperação judicial, vai de encontro ao sentido atribuído pelo legislador ao instituto recuperacional.

Celebremos, pois, o reforço do entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca do assunto, o que, por certo, balizará os Tribunais Estaduais e Federais por todo o País.

Algumas novidades da ANPD

O ano de 2023 acabou de começar e, com ele, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) deixou de ser uma autarquia com status de agência reguladora vinculada à Secretaria Geral da Presidência da República e passou a ser vinculada ao Ministério da Justiça.

O instrumento jurídico utilizado para tanto foi o Decreto n° 11.348, datado de 1º de janeiro de 2023, que, estabeleceu, também, a competência do Ministro da Justiça e Segurança Pública para ditar as políticas do Tratamento de Dados Pessoais, inclusive, com estratégia comum baseada em modelos de gestão e de tecnologia que permitam a integração e a interoperabilidade dos sistemas de tecnologia da informação dos entes federativos, nas matérias afetas à Justiça e Segurança Pública.

A nova vinculação da ANPD reflete no Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade que, também, fica vinculado ao Ministério da Justiça.

Os profissionais que lidam com proteção de dados no Brasil estão confiantes que esses novos rumos da ANPD viabilizem a sua completa estruturação, para que as suas atribuições, previstas no artigo 55-J da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), sejam executadas na íntegra.

Por hora, a ANPD vem editando seus atos normativos, especialmente, de cunho pedagógico, a exemplo do lançado no último dia 23 de dezembro de 2022. Trata-se do novo formulário para comunicação de incidentes de segurança (CIS) pelos controladores de dados pessoais para a ANPD. 

Prevista pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), a comunicação de incidente de segurança (CIS) permite aos titulares tomarem conhecimento de eventuais violações de seus dados pessoais. Possibilita, também, que os agentes de tratamento demonstrem à Autoridade o cumprimento de suas obrigações legais relativas ao incidente e a adoção de medidas de segurança adequadas às suas atividades de tratamento de dados.

O novo formulário foi desenvolvido para facilitar o preenchimento pelos controladores e a análise das comunicações de incidentes pela ANPD, sendo certo que restou ampliado o uso de respostas estruturadas, bem assim, foram incluídas orientações sobre o processo de comunicação de incidentes no seu bojo.

O novo formulário só pode ser encaminhado em formato pdf, por meio do Peticionamento Eletrônico do SUPER.BR (Sistema Único de Processo Eletrônico em Rede). 

A implantação do novo formulário para a comunicação de incidente de segurança (CIS) reforça a importância da atuação, junto às empresas, do Encarregado de Dados, ou DPO – Data Protection Officer, impondo, por conseguinte, a necessária e indispensável adequação dos diversos setores da economia brasileira aos ditames da Lei Geral de Proteção de Dados.

O que falta para a ANPD aplicar as multas previstas na LGPD?

A Lei n° 13.709/2018, mais conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), foi publicada há mais de 04 (quatro) anos, sem que nenhuma das 09 (nove) penas, previstas no seu artigo 52, tenha sido aplicada.

Mas, qual o real motivo da ANPD – Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ainda não ter aplicado nenhuma multa? O que falta para tanto?

A resposta é simples: a ANPD depende da publicação de uma portaria com a metodologia de cálculo das multas para começar a aplicá-las. É o que consta do seu artigo 53 (“A ANPD definirá, por meio de regulamento próprio sobre sanções administrativas a infrações a esta Lei, que deverá ser objeto de consulta pública, as metodologias que orientarão o cálculo do valor-base das sanções de multa”).

A Consulta Pública já foi realizada pela Autoridade Nacional, no período havido entre os dias 16 de agosto e 15 de setembro de 2022. Foram mais de 2.000 (duas mil) contribuições de diferentes segmentos da sociedade civil, trazendo pluralidade e diversidade ao projeto de regulamentação.

Os próximos passos incluem a análise de admissibilidade das contribuições pela Coordenação-Geral de Normatização e avaliação das sugestões pela equipe de projeto da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Haverá, ainda, uma análise jurídica; definição de novo relator no Conselho Diretor da Autoridade para proposição de um texto final; votação; e, aprovação. 

A expectativa é que, até o final do ano de 2022, ou, no começo de 2023, a Portaria necessária à aplicação das multas pela ANPD seja publicada no Diário Oficial, viabilizando a finalização dos processos administrativos que investigam infrações – que já estão sendo conduzidos internamente – com a aplicação da reprimenda cabível.

Uma coisa é certa, apesar de ainda não terem sido publicadas objetivamente as formas e dosimetrias para o cálculo do valor-base das sanções de multa (que podem chegar até 2% do faturamento da empresa, limitada a R$ 50 milhões por infração), as penalidades terão efeito retroativo e as empresas poderão ser multadas por situações ocorridas desde 01 de agosto de 2021, data do início da vigência das sanções.

Logo, possivelmente, as primeiras sanções em pecúnia da ANPD serão referentes a eventos já ocorridos e que estão sob investigação. O importante é que as empresas se adequem, o quanto antes, ao que dita a LGPD, com a implantação de projetos de conformidade, bem assim, a adoção de uma governança de dados, demonstrando, enfim, que estão preocupadas com os dados das pessoas naturais e que possuem medidas para reverter ou mitigar os efeitos de um incidente de vazamento de dados.

Recuperação Judicial e Revisão dos Contratos

Em recentíssimo julgado, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a habilitação do crédito e a posterior homologação do plano de recuperação judicial não impedem a rediscussão do seu valor em sede de ação revisional de contrato (Resp n° 1700606 – PR).

A decisão teve origem em ação proposta por uma empresa em recuperação judicial contra uma instituição bancária, visando à revisão de contratos de empréstimo, em virtude de suposto excesso na cobrança de juros e outras irregularidades.

Em sua defesa, o banco alegou que, ao apresentar o pedido de recuperação, a empresa concordou tacitamente com todas as cláusulas inseridas nos contratos, o que impediria o ajuizamento da ação revisional.

Asseverou, ainda, que seu crédito, de mais de R$ 4 milhões, já devidamente habilitado, não foi impugnado no prazo legalmente previsto, de modo que, sobrevindo a homologação do plano de recuperação, não mais seria possível a rediscussão do valor em ação revisional de contrato bancário.

O Relator do processo no STJ, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva ressaltou que, conforme o artigo 59 da Lei n° 11.101/2005, o plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sendo certo que o reconhecimento judicial da concursalidade do crédito, habilitado ou não, torna obrigatória a sua submissão aos efeitos da recuperação.

O Ministro observou também que a mesma lei, em seu artigo 50, inciso I, quando utiliza um conceito aberto ao tratar das “condições especiais para pagamento”, deixa transparecer que tal norma deve ser interpretada da forma mais ampla possível, admitindo a adoção de qualquer condição que seja aceitável para os credores e que possam contribuir para o soerguimento da empresa recuperanda, ante o princípio da preservação da empresa que norteia o processo recuperacional.

Em relação ao crédito já habilitado, o relator ponderou que, ainda que já tenha sido homologado pelo juízo da recuperação, nada impede que sobrevenham acréscimos ou decréscimos por força de provimento jurisdicional definido em demandas judiciais em curso, a ensejar a aplicação da condição especial definida no plano de recuperação ao novo valor do débito judicialmente reconhecido.

De fato, ante a importância da temática para as empresas que se encontram em recuperação judicial, a consolidação deste entendimento configura uma chance a mais para o efetivo soerguimento empresarial.