Habilitação de crédito em processo de inventário

Trata-se de pedido de habilitação de crédito formulado em face do espólio nos autos da ação de inventário, com objetivo de recebimento deste, à luz do art. 642 do CPC. Em suas considerações iniciais, o autor da ação afirma ser credor do espólio em virtude da cessão de direitos hereditários, realizada por meio de instrumento particular, por uma das herdeiras, o qual continha cláusula contratual prevendo cessão de fração de 20% (vinte por cento) do total de seu quinhão hereditário decorrente de seu genitor, ora inventariado.

Ao realizar o respectivo pedido, requereu ao juízo que fosse determinada a separação de quantia ou, em sua falta, de bens suficientes para o pagamento da dívida. bem como a alienação dos bens, tantos quantos necessários para o pagamento do crédito, em praça ou leilão.

O Juízo da 2ª Vara Cível e Criminal da Comarca de Bonito/MS extinguiu o pedido de habilitação, em decorrência da ilegitimidade ativa ad causam do autor, haja vista que a possibilidade de habilitação de crédito nos autos do inventário está adstrita aos credores do espólio, não aos herdeiros de forma individual. Desta forma, eventual cobrança de dívida de herdeiro deve ser realizada através de outras modalidades, não impedindo eventual incidência sobre o quinhão da herdeira inadimplente.

Interposto recurso, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina manteve hígida a sentença, destacando que, diferentemente do pedido de habilitação de crédito, existe a previsão legal para realização de penhora no rosto dos autos, entretanto, para efetivação da constrição que recairá nos bens ou direitos que couberem ao herdeiro no processo de inventário, indispensável a existência de ação prévia que reconheça tal direito.

Assim sendo, ainda que a herdeira tenha oferecido seu quinhão hereditário em garantia, inviável discutir a satisfação do crédito ou determinar a reserva de bens nos próprios autos do inventário, devendo ser executado o crédito pela via processual adequada, para posterior requerimento de penhora do quinhão da parte devedora no rosto dos autos do processo de inventário.

A respeito da cessão de direitos hereditários, esta pode se realizar de forma onerosa ou gratuita, observada a escritura pública como forma, conforme artigo 1.793 do CC/2002 e tem por objeto a universalidade de direitos, transferindo apenas direitos e não a qualidade de herdeiro. Ainda, deverá ser aperfeiçoado após a abertura da sucessão, com o recolhimento do respectivo imposto, a depender da modalidade, observado o direito de preferência dos coerdeiros quando onerosa.

Ainda a respeito do mesmo tema, o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região decidiu pelo cabimento da penhora no rosto dos autos de processo de inventário quando a executada em ação trabalhista é uma das herdeiras, haja vista que a indivisibilidade ocorre somente até a partilha.

Nos autos do julgamento de agravo de petição de n° 0020125-59.2015.5.04.0702, a sócia executada requereu a desconstituição da penhora sob o seu quinhão bloqueado nos autos do inventário o qual figura como herdeira. Em suas razões, aduziu que não ser o espólio devedor, de forma que seria vedada a penhora no rosto dos autos antes de ultimada a partilha.

Em que pese as razões suscitadas, a decisão ressaltou que a constrição não incidiu sobre o espólio, mas sim, sobre o quinhão destinado a herdeira. Tratando-se ainda, de garantia ao credor trabalhista o seu direito, observado o limite do valor do quinhão destinada à herdeira.

Sendo assim, analisadas as possibilidades e limites impostos pela lei, é possível conferir aos credores a segurança da satisfação dos seus respectivos créditos, observados os direitos sucessórios dos herdeiros e proteção à segurança do espólio.

A Recuperação Judicial, os Créditos Trabalhistas e a Desconsideração da Personalidade Jurídica no âmbito laboral

O processo de Recuperação Judicial, cujo marco regulatório é a Lei n° 11.101/2005, tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira da empresa devedora, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. É o que se chama do princípio da preservação da empresa, previsto no artigo 47 da Lei n° 11.101/2005.

O mencionado princípio recuperacional foi concebido, pelo legislador, à luz do que dita a nossa Constituição Federal que, ao regular a ordem econômica, impõe a observância dos postulados da função social da propriedade (artigo 170, inciso III), como também, a busca do pleno emprego (inciso VIII), o que só poderá ser atingido se as empresas forem preservadas.

A Lei de Recuperação Judicial e Falências determina, para os créditos trabalhistas (Classe 1), que os valores de natureza estritamente salarial, limitados até 150 (cento e cinquenta) vencidos nos 03 (três) meses anteriores à decretação da recuperação judicial e/ou falência, até o limite de 05 (cinco) salários-mínimos por trabalhador, deverão ser pagos tão logo haja disponibilidade em caixa.

Inobstante, temos percebido que a Justiça do Trabalho tem se utilizado muito do instituto da desconsideração da personalidade jurídica para satisfazer o crédito de um trabalhador, cujo montante se encontra listado e habilitado em processo de recuperação judicial da empresa empregadora. Mas, será que tal comportamento se coaduna com o princípio da preservação da empresa tão preconizado na Lein° 11.101/2005?

Pois bem, a desconsideração da personalidade jurídica, na Justiça do Trabalho, é meio lídimo de satisfação da dívida pelo credor quando as tentativas de fazê-lo em face do devedor originário malograram.

O artigo 789 do Código de Processo Civil estabelece que o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei, o que significa dizer que a satisfação da dívida enseja um dever para o devedor e uma responsabilidade para o seu patrimônio. É cediço que a pessoa do sócio não se confunde com a pessoa jurídica.

Os artigos 49-A e 1.024 do Código Civil, por sua vez, consagram o “princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas”, que nada mais é, nos termos do parágrafo único do artigo 49-A mencionado, do que um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.

Ou seja, a responsabilidade patrimonial do sócio encontra restrição nos artigos 790, inciso II, cumulado com o 795, ambos do Código de Processo Civil, no sentido de que seus bens só respondem pela dívida societária nos casos previstos em lei.

A empresa detém o débito e a responsabilidade pelo pagamento, enquanto os sócios ao terem seus bens alcançados pelas dívidas da pessoa jurídica que compõem não possui débito, mas se tornam responsáveis pela obrigação contraída.  

Em verdade, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica surgiu unicamente com o intuito de ultrapassar pontualmente a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em razão do uso indevido desta e não a personalidade jurídica.

A desconsideração da personalidade jurídica permite que bens de terceiros sejam processualmente excutidos para satisfazer dívida de credor que não obteve êxito para tanto do devedor originário.  Os requisitos para desconsideração da personalidade jurídica encontram-se presentes em diversas normas do ordenamento jurídico, a saber: art. 50, CC; art. 28, CDC; art. 2°, §2°, da CLT; art. 135 do CTN; arts. 117, 158, 245 e 246 da Lei n. 6.404/76;  art. 4° da Lei n. 9.605/98; art. 18, §3°, da Lei n. 9.847/99; art. 34 da Lei n. 12.529/2011; e art. 14 da Lei n. 12.846/2013.

Na esfera trabalhista, a 6ª turma do TRT da 1ª região, recentemente, negou provimento a um agravo de petição interposto pelos sócios de uma empresa de serviços gerais em processo de recuperação judicial. Condenados a responder subsidiariamente pelo inadimplemento dos créditos trabalhistas de um ex-empregado, os empresários alegaram que a inclusão no polo passivo da execução só caberia se comprovada a má administração da empresa, o que não ocorreu.

A relatora do acórdão, ao analisar o recurso, quanto à alegação de suspensão da execução, lembrou que conforme o disposto no artigo 6º da Lei n° 11.101/05, a abertura do processo de recuperação judicial suspende o curso de todas as execuções pelo prazo de 180 dias, salvo disposição judicial que amplie esse prazo. É o chamado stay period. No presente caso, a magistrada verificou que o referido prazo já estava superado e não havia, nos autos, prova de que foi prorrogado judicialmente, tendo destacado que:

“Revendo posicionamento até então adotado, passo a defender o entendimento de que nos casos em que a empresa executada está submetida a processo de recuperação judicial ou falência, há possibilidade de redirecionamento da execução, na Justiça do Trabalho, contra os sócios responsabilizáveis ou responsáveis subsidiários, antes mesmo de encerrado o processo no Juízo Universal.”

Percebe-se com a afirmação acima que o entendimento da Justiça do Trabalho para credores trabalhistas é no sentido de estimular a manutenção das reclamações existentes, mesmo que os créditos dos trabalhadores estejam listados e habilitados no processo recuperacional, dado que a execução pode ser imediatamente direcionada aos sócios, independentemente do desfecho do processo falimentar ou de recuperação judicial, bastando haver a confusão patrimonial entre os bens dos sócios e da empresa, não sendo necessária a comprovação de fraude ou má administração, como exige a legislação civil.

Tem-se a impressão que a Justiça do Trabalho, smj, desconsidera a importância da preservação da empresa e pretende acabar com a recuperação judicial para crédito Classe 1 (de reclamantes) mediante despersonalização da pessoa jurídica de forma simples e automática, mesmo sem o preenchimento dos requisitos da lei civil. É preciso, urgente, fomentar o debate para que este entendimento seja modificado, preservando o instituto da recuperação judicial.

Dentistas aposentados têm direito à revisão do benefício previdenciário?

Inicialmente, vale esclarecer que um dos princípios que rege o direito previdenciário é o tempus regit actum (tempo em que rege o ato), ou seja, é necessário observar a situação concreta à luz da legislação da época. Traremos aqui um caso concreto envolvendo um profissional em odontologia, que teve sua aposentadoria majorada em razão da atividade ser considerada especial.

Salienta-se que a comprovação da atividade especial até 28/04/1995 era feita com o enquadramento por atividade profissional (situação em que havia presunção de submissão a agentes nocivos) ou por agente nocivo. Neste sentido, a função de Dentista era enquadrada como especial pelo simples exercício desta atividade, cuja categoria profissional estava prevista no Código 2.1.3 do Anexo II ao Decreto nº 83.080/79.

A partir de 29/04/1995 foi definitivamente extinto o enquadramento por categoria profissional, de modo que passou a ser necessária a demonstração efetiva de exposição a agentes nocivos, de forma permanente, por meio de formulário-padrão preenchido pela empresa, sem a exigência de embasamento em laudo técnico, ressalvados os agentes nocivos ruído e calor.

Com a vigência do Decreto nº 2.172/97, passou-se a exigir, para fins de reconhecimento de tempo de serviço especial, a comprovação da efetiva sujeição do segurado a agentes agressivos por meio da apresentação de formulário-padrão, embasado em laudo técnico, ou por meio de perícia técnica.

Qualquer dos formulários emitidos até 31/12/2003 são aceitos para comprovação da exposição a agentes nocivos, quais sejam DIRBEN-8030, DSS-8030, DISES BE 5235, SB-40. E, a partir de 01/01/2004, somente é aceito o Perfil Profissiográfico Previdenciário – PPP.

Desde que comprovado o exercício da atividade especial, através da categoria profissional, formulários e/ou laudos periciais, a depender da época, é possível converter o tempo comum em tempo especial até a Reforma Previdenciária advinda com a Emenda Constitucional nº 103/2019. Em regra, essa conversão utiliza do fator 1,2 para mulheres e 1,4 para homens.

Merece atenção o prazo decadencial, pois somente poderá pedir a revisão de forma judicial o segurado que tenha recebido o valor da primeira aposentadoria há menos de 10 anos.

Com base na comprovação de atividade especial, foi reconhecido, judicialmente, a majoração do benefício previdenciário de uma profissional da área,  , cuja decisão determinou o seguinte: “Com essas considerações, julgo procedente o pedido veiculado na inicial, extinguindo o presente feito com resolução do mérito (art. 269, I, do CPC), para, reconhecendo que o autor laborou em condições especiais, nos períodos destacados (01/09/1986 a 02/01/1990; 02/05/1996 a 13/11/2008 e 01/07/2009 até a DER) determinar que o INSS revise a RMI convertendo esse tempo de serviço com aplicação do fator 1,2 para contagem no tempo de contribuição ao autor.” Portanto, a Renda Mensal Inicial – RMI, na data da DER em 19/09/2017, foi majorada de R$ 2.898,91 a R$ 3.458,82, tendo o profissional em odontologia o direito a todo o retroativo à DER.

Multa prevista em acordo homologado judicialmente tem natureza de cláusula penal, decide o STJ

No julgamento do Recurso Especial nº 1.999.836/MG, de Relatoria da Min. Nancy Andrghi, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entendeu que a multa prevista em acordo homologado judicialmente tem natureza jurídica de multa contratual (cláusula penal), e não de astreintes. Assim, a sua redução se submete às normas do Código Civil (CC).

Com base neste entendimento, negou-se provimento ao referido Recurso Especial, uma vez que a imobiliária recorrente sustentava que a multa por atraso no cumprimento da obrigação, pactuada em transação homologada judicialmente, deveria caracterizar-se como astreintes, e, por isso, poderia ser revisada a qualquer tempo, por força do artigo 537, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil.

Mas, ao contrário disso, a relatora do julgamento do recurso no STJ, a ministra Nancy Andrighi, observou que a transação é um contrato típico, previsto nos artigos 840 e 842 do Código Civil, de modo que a multa discutida no referido caso, por decorrer de acordo firmado entre as partes, tem natureza jurídica de multa contratual, ou seja, a chamada cláusula penal, prevista nos artigos 408 a 416 do Código Civil.

Inclusive, a Magistrada ainda ressaltou que o artigo 413 do Código Civil prevê expressamente a possibilidade da multa ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo em vista a natureza e a finalidade do negócio.

E finalizou explicando, no referido julgamento, que como a multa prevista em transação homologada judicialmente tem natureza de cláusula penal, e não de astreintes, a imobiliária (recorrente) deveria ter fundamentado o pedido de revisão do valor com base no artigo 413 do CC, e não no artigo 537, parágrafo 1º, do CPC. Além disso, a E. Ministra comentou que a análise de eventual desproporcionalidade da cláusula penal só ocorre excepcionalmente em recurso especial, em razão da Súmula 5 e da Súmula 7 do STJ.

 No referido julgamento, portanto, a 3ª Turma do STJ deixou claro que a multa contratual derivada de um acordo homologado judicialmente tem a natureza de uma cláusula penal, regulamentada pelos artigos 408 a 416 do Código Civil, só podendo sofrer alguma revisão consoante as hipóteses expressamente elencadas no artigo 413 do mesmo código.

Quais medidas podem ser adotadas em caso de falta dos empregados decorrente de greve do transporte público?

Com a greve dos rodoviários deflagrada à meia-noite do dia 26/07/2023 na cidade do Recife, alguns trabalhadores não conseguiram se deslocar até seus postos de trabalho, outros acabaram chegando após o horário de início de suas atividades, situações que acabam por gerar transtornos dentro do ambiente de trabalho. De um lado os trabalhadores que dependem do transporte público para se deslocar, do outro o empregador que depende desses empregados para operar.

Esse cenário se agrava ainda mais com a promessa de que a greve deve perdurar de forma indeterminada, acabando por gerar dúvidas:

  1. O dia não trabalhado deve ser considerado falta injustificada?
  2. Pode haver desconto no salário nesse dia?
  3. O atraso no início das atividades pode ser descontado?
  4. Como fica o cálculo do descanso semanal remunerado (DSR)?
  5. A falta deve ser abonada?

A legislação trabalhista não traz norma especifica quanto ao tema, suscitando controversa entre doutrinadores e juristas. De um lado, o artigo 473 da CLT, que traz de forma taxativa as situações que o empregado pode deixar de comparecer ao trabalho sem prejuízo do salário, não elencando a paralização dos serviços de transporte público como motivo justificador para ausência ao trabalho.

Ou seja, olhando por essa perspectiva, caso não tenha previsão em norma coletiva em sentido contrário, a empresa, em tese, estaria acobertada em proceder com desconto no salário pelos dias não trabalhados, inclusive no que tange ao DSR.

Por outro lado, o argumento utilizado para os que defendem que a falta é justificada, é de que a empresa, por força do artigo 2º da CLT, assume o risco do negócio, não podendo o trabalhador, que utilizada transporte público, ser penalizado em razão de greve pela qual não deu causa, principalmente porque fez a opção pelo recebimento do vale transporte.

A experiência tem mostrado que o melhor caminho é o bom senso, analisando caso a caso e buscando encontrar mecanismos que reduzam os prejuízos para trabalhadores e empresários. O primeiro passo é olhar a norma coletiva da categoria e, em não havendo previsão em sentido contrário, as empresas que adotam Banco de Horas podem realizar a compensação dos atrasos ou dias não trabalhados. Já para as empresas que não possuem Banco de Horas regularmente instituído, nos moldes do artigo 59, §6º da CLT, poderão realizar acordo para a compensação das horas dentro do mesmo mês. As empresas também podem fornecer transporte nesses dias ou até mesmo acordar o labor em regime de home office, quando a atividade desempenhada assim permitir. Tais possibilidades, conduto, só podem ser adotadas para os trabalhadores que optaram pela utilização de transporte público, não sendo aplicada para os que se deslocam por outros meios, ocasião em que a falta não é justificada.

Por: Felipe Medeiros e Paula Saldanha

Patrimônio de afetação em loteamentos

Em 14/07/2023 foi promulgada a Lei 14.620/2023, a qual dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida, estabelecendo suas novas diretrizes e, consequentemente, promovendo a alteração de legislações correlatas.

Dentre as várias mudanças operadas pela Lei, merece atenção a inclusão dos artigos 18-A a 18-F na Lei 6.766/1979, os quais disciplinam a possibilidade da instituição do regime de patrimônio de afetação em loteamentos, considerando que o instituto era restrito à incorporação imobiliária.

O patrimônio de afetação é caracterizado pela segregação do patrimônio do loteador de todo o terreno e infraestrutura desenvolvida para o loteamento, incluindo os bens e direitos, os quais ficarão afetados à consecução do empreendimento e à entrega dos lotes urbanizados aos respectivos adquirentes.

Nesse contexto, importante ressaltar a segurança jurídica trazida pelo instituto aos promissários compradores e investidores ao assegurar que o patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do loteador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos, de modo que apenas responderá por dívidas e obrigações vinculadas ao respectivo loteamento.

Logo, o patrimônio de afetação afasta também todos os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do loteador, de modo que o terreno, a obra e os demais bens, tais quais: direitos creditórios, obrigações e encargos objeto do loteamento, não integrarão a massa concursal.

Além disso, importante ressaltar a maior transparência e controle sobre o caixa do empreendimento, considerando a obrigatoriedade de uma contabilidade separada e completa, mesmo que esteja desobrigado pela legislação tributária, permitindo uma fiscalização mais concreta por parte dos órgãos públicos, instituições financeiras e promissários compradores.

Em que pese o patrimônio de afetação proporcionar transparência e garantia de que o empreendimento será entregue dentro das condições estabelecidas, por outro lado provoca uma maior rigidez do caixa, considerando que o loteador não poderá utilizar os recursos daquele loteamento afetado em outros empreendimentos.

Diante disso, o instituto apenas passou a ter uma ampla adesão pelos incorporadores quando o Governo Federal passou a estimular o seu uso através da concessão do Regime Especial de Tributação (RET) para os empreendimentos que estivessem com seu patrimônio afetado, reduzindo a tributação do lucro presumido de 6,73% para 4%. Ocorre que, não há menção na nova lei acerca da aplicação do RET para os loteamentos.

Ademais, outro ponto de controvérsia está sendo a possibilidade de aplicação do parágrafo 5º, art. 67-A, da Lei 4.591/64, por analogia, aos loteamentos. A norma dispõe acerca da possibilidade de retenção de 50% (cinquenta por cento) pelo incorporador da quantia paga pelo adquirente, em caso de resolução por inadimplemento do promissário comprador, caso o empreendimento esteja submetido ao regime de patrimônio de afetação.  

Diante da ausência de julgados sobre o tema, pela recente promulgação e vigência da Lei 14.620/2023, devemos aguardar o posicionamento da jurisprudência acerca dos aspectos controvertidos em discussão.

A primeira multa aplicada pela ANPD

No mês de comemoração do 5º (quinto) aniversário da data de promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) aplicou a sua 1ª (primeira) multa.

De fato, o Diário Oficial da União (DOU), trouxe na sua Edição n° 127, publicada em 06/07/2023, o detalhamento da 1ª (primeira) multa aplicada pela ANPD, contra uma microempresa, que sofreu: (i) uma advertência, sem imposição de medidas corretivas, por infração ao artigo 41 da LGPD (indicação de encarregado pelo tratamento de dados pessoais ou DPO); (ii) uma multa simples,  no valor de R$ 7.200,00 (sete mil e duzentos reais), por infração ao artigo 7º da LGPD (tratamento irregular de dados pessoa); e, (iii) outra multa simples, também estipulada em R$ 7.200,00 (sete mil e duzentos reais), por infração ao artigo 5º do Regulamento de Fiscalização (Resolução CD/ANPD nº 1, de 28 de outubro de 2021).

Segundo a ANPD, a microempresa, durante a fiscalização deveria:

I – fornecer cópia de documentos, físicos ou digitais, nas condições estabelecidas pela ANPD;

II – permitir o acesso às instalações e todos os ativos de informação para a avaliação das atividades de tratamento de dados pessoais, em seu poder ou em poder de terceiros;

III – possibilitar que a ANPD tenha conhecimento dos sistemas de informação utilizados e as informações oriundos destes instrumentos;

IV – submeter-se a auditorias realizadas ou determinadas pela ANPD; e,

V – manter os documentos físicos ou digitais durante todo o prazo de tramitação de processos administrativos nos quais sejam necessários

O Despacho possibilitou, ainda, caso o autuado resolva, renunciar expressamente ao direito de recorrer da decisão de 1ª (primeira) instância, fará jus a um fator de redução de 25% (vinte e cinco por cento) no valor da multa aplicada.

Fato curioso para os operadores do Direito que atuam com a temática é que a multa aplicada pela ANPD não registra a fórmula da dosimetria da pena. Isso porque muito se tratou a respeito do cálculo da pena a ser imposta pela Autoridade, com amplo debate social sobre o tema. E, ao aplicar a 1ª (primeira) multa, a Autoridade não consignar o seu racional, deixa a lamentável impressão de que algum lapso ocorreu.

Outra curiosidade é que a própria ANPD, por meio da Resolução CD/ANPD n° 2, de 27 de janeiro de 2022, regulamentou, no seu artigo 11, que as microempresas não são obrigadas a indicar o encarregado pelo tratamento de dados pessoais exigidos pelo artigo 41 da LGPD. Aplicar uma multa, neste sentido, é um contrassenso ao que a própria ANPD regulou.

Inobstante, uma coisa é fato, as empresas precisam correr para se adequar aos ditames da LGPD (que não ocorre da noite para o dia, é preciso tempo), especialmente, porque a ANPD já começou a atuar e aplicar as penas autorizadas para tanto. É preciso cuidar dos dados pessoais que circulam nas empresas e órgãos públicos, observando os ditames da LGPD.

Lei nº 14.611/2023: a igualdade salarial entre homens e mulheres

Foi publicada no dia 04/07/2023, a Lei nº 14.611/2023 que dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens para a realização de trabalho de igual valor ou no exercício da mesma função.

A lei em referência alterou o §6º e acrescentou o §7º do artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, para possibilitar o pedido de indenização por danos morais àquelas pessoas que são discriminadas por motivo de sexo, raça, etnia, origem ou idade, podendo ser cumulado com o pedido de diferenças salariais em razão da equiparação salarial. E, sem prejuízo no caso de infração, aumenta a multa administrativa para o equivalente a 10 (dez) vezes o valor do novo salário devido pelo empregador ao empregado discriminado, elevada ao dobro, no caso de reincidência.

Neste ponto, importante ressaltar que o artigo 461 da CLT já continha previsão expressa para garantir a igualdade salarial, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade e idade,  apontando os seguintes requisitos para a análise da equiparação salarial: (i) identidade de função; (ii) trabalho de igual valor, com igual produtividade e mesma perfeição técnica, prestado ao mesmo empregador e no mesmo estabelecimento empresarial; (iii) diferença de tempo de serviço para o mesmo empregador não superior a quatro anos; e (iv) diferença de tempo na função não superior a dois anos. Neste sentido, a regra contida na norma já proibia distinção salarial em decorrência do sexo.

O ponto de maior destaque foi a determinação da publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas pessoas jurídicas de direito privado com 100 (cem) ou mais empregados, observada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Nos relatórios deverão conter dados anonimizados, que são aqueles dados desvinculados aos seus titulares, e informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens. Além disso, as informações sobre raça, etnia, nacionalidade e idade também deverão ser fornecidas.

Caso seja identificada disparidade salarial ou de critérios remuneratórios, a empresa deverá implementar plano de ação para mitigar a desigualdade, com metas e prazos, garantida a participação de representantes das entidades sindicais e de representantes dos empregados nos locais de trabalho.

Conforme visto acima, a análise jurídica para eventual equiparação salarial depende de quatro requisitos e não apenas do cargo ocupado e do nível salarial. Contudo, é certo que o relatório dará maior visibilidade à empresa caso alguma irregularidade esteja sendo praticada, facilitando a aplicação de eventual penalidade por parte do Estado.

Na hipótese de descumprimento com relação ao relatório de transparência, será aplicada multa administrativa cujo valor corresponderá a até 3% (três por cento) da folha de salários do empregador, limitado a 100 (cem) salários-mínimos.

Além de aumentar a fiscalização, a Lei estabelece uma maior transparência e aplicação de medidas afirmativas, a exemplo de promoção e implementação de programas de diversidade e inclusão no ambiente de trabalho que abranjam a capacitação de gestores, de lideranças e de empregados a respeito do tema da equidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, com aferição de resultados, além da disponibilização de canais específicos para denúncias de discriminação salarial.

Ainda não foi publicado nenhum ato do Poder Público regulamentando a transmissão de informação para a publicação em plataforma digital de acesso público do relatório de transparência, nem a atribuição de responsabilidade acerca das medidas afirmativas, se ficará a cargo das empresas ou do Poder Executivo. No entanto, certamente haverá um aumento na fiscalização sobre esse assunto perante as empresas.

Por: Eduarda Medeiros e Felipe Medeiros

Partilha de bens definida em ação divórcio. Competência do juízo cível e empresarial para decidir discussão remanescente de cunho patrimonial

Trata-se de conflito de competência suscitado pela MMª. Juíza de Direito da Vara de Sucessões, Empresarial e de Registros Públicos da Comarca de Juiz de Fora em face da decisão proferida pelo MM. Juiz de Direito da 4ª Vara de Família da Comarca de Juiz de Fora, a qual declinou da competência para julgamento do Cumprimento de Sentença instaurado nos autos da Ação Cautelar onde se pretendia a fiscalização da sociedade familiar comum.


Antes de tecer maiores considerações acerca do tema, cumpre esclarecer que a competência é o critério de distribuição das atividades exercidas entre os vários órgãos do Poder Judiciário, em razão do qual haverá a limitação da prestação jurisdicional com vistas ao seu melhor desempenho.
Dentre os diversos critérios estabelecidos para distribuição da competência, tem-se a realizada em razão da matéria a qual, em regra, após realizadas as devidas considerações face à Constituição Federal, é estabelecida por normas de organização judiciária local, não sendo passível de modificação por vontade das partes, sendo assim absoluta.


Em suas razões, a MM. Juíza da Vara de Sucessões, Empresarial e de Registros Públicos da Comarca de Juiz de Fora suscitou que a controvérsia da lide versava a respeito de matéria de partilha de bens resolvida em processo que visava extinção do núcleo familiar e o simples fato de existir partilha de cotas de empresa não seria determinante para transferir a competência para a Vara Empresarial, devendo tramitar onde a questão foi resolvida.


Doutro lado, o MM. Juiz da Vara de Família reconheceu a sua incompetência, haja vista o exaurimento da discussão acerca da matéria familiar, remanescendo apenas questões de natureza patrimonial.
Ao analisar o conflito em apreço, a Desembargadora Relatora Ângela De Lourdes Rodrigues considerou que, ainda que proveniente de confronto em ação de divórcio, o Cumprimento de Sentença instaurado nos autos de Ação Cautelar que visava fiscalização da sociedade familiar que foi partilhada deve ser processado e julgado perante uma das Varas Cíveis e Empresariais.


Para além da matéria em discussão, foi considerada a previsão contida no artigo 60 da Lei Complementar nº 59, que dispõe sobre a Organização e a Divisão Judiciárias do Estado de Minas Gerais e estabelece que compete ao Juiz de Vara de Família processar e julgar as causas relativas ao estado das pessoas e ao Direito de Família, respeitada a competência do Juiz de Vara da Infância e da Juventude, bem como o Enunciado 54, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que em exemplo elucidativo estabelece que a discussão relativa à matéria que não está inserida no campo do direito de família não atrai a competência das Câmaras Cíveis de Direito Público, ainda que tenha origem em ação de divórcio e partilha de bens.
Realizada a aplicação analógica de enunciado utilizado para julgamento das causas em segunda instância, foi possível concluir que, superada as questões acerca do direito de família propriamente dito, a lide buscava o cumprimento de uma obrigação de fazer relativa à demanda de cunho eminente patrimonial/obrigacional que envolve Direito Empresarial, devendo ser reconhecida a competência para processamento e julgamento das Varas Cíveis/Empresariais ainda que surgida em discussões travadas em ação de divórcio, separação, união estável.


Desta forma, considerando as particularidades da ação, em que pese proveniente de discussão originada no direito de família, por ter perdido sua essência de contexto familiar e estado das pessoas, a lide fundou-se em obrigação de natureza patrimonial razão pela qual seu processamento e julgamento será doravante realizado perante a Vara de Sucessões, Empresarial e de Registros Públicos da Comarca de Juiz de Fora.

Negócios Imobiliários Via Token e Aspectos Registrais

A dinâmica do mercado tem produzido transformações e importantes inovações a respeito da possibilidade da tokenização da propriedade imobiliária.

Para a International Organization of Securities Commissions (IOSCO), a tokenização é “o processo de representar digitalmente um ativo ou propriedade de um ativo”. A criação de direitos ou créditos no meio digital, através da tecnologia blockchain, tem sido conhecida como tokenização.

Em referência ao assunto abordado, temos o recente pronunciamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por meio do Provimento 38/21 da a Corregedoria-Geral da Justiça (CGJ), o qual regulamentou a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis por tokens, bem como o respectivo registro imobiliário.

A escritura pública que motivou a CGJ do Rio Grande do Sul a editar o referido provimento remete à permuta de um imóvel por um token criado através de smart contract na rede principal do Ethereum (main network), tendo sido lavrada em 18 de maio de 2021.

O modelo de tokenização imobiliária proposto pela empresa Netspaces, permutante no ato originário do processo, foi o seguinte:

  1. O proprietário acessa o site da empresa e solicita a digitalização do imóvel de sua propriedade;
  2. O proprietário e a empresa assinam uma escritura de permuta, pela qual a empresa recebe a propriedade do imóvel, que se transformará em propriedade digital;
  3. Neste ato, o proprietário paga o ITBI devido ao município e os custos da escritura;
  4. A seguir, o proprietário paga os custos do registro da escritura no cartório de imóveis. Feito o registro, a mencionada empresa adquire a propriedade efetiva do imóvel;
  5. Uma vez “digitalizado” o imóvel, a empresa registra a transação e a propriedade digital na blockchain em nome do antigo proprietário, o qual terá apenas a propriedade digital, representada por um token.

Ainda de acordo com o modelo proposto, após a “digitalização da propriedade”, o dono do imóvel digital e, por conseguinte, detentor do token que representa essa sua qualidade no ambiente virtual, pode aliená-lo a terceiros, desde que as transações sejam realizadas dentro da plataforma da Netspaces, conforme artigos 33 e 34 do regulamento supracitado.

Além disso, remanesce ao proprietário digital uma relação possessória sobre a propriedade real, regida pelas disposições do Código Civil. Logo, o direito de usar o imóvel em propriedade digital poderá ser exercido pelo proprietário digital ou, de acordo com a sua vontade, por terceiros, a título gratuito ou oneroso.

Não obstante, a faculdade de fruir do imóvel em propriedade digital pertence ao proprietário digital, o qual poderá transferi-lo em caráter não definitivo a quem queira, a título gratuito ou oneroso.

As vantagens da tokenização imobiliária são inegáveis: possibilitam o fracionamento do valor patrimonial permitindo ao investidor um baixo valor de entrada, permitem a diversificação dos ativos, pois um token pode estar vinculado a diversos imóveis (residenciais, comerciais, industriais etc.). Outras vantagens são a liquidez imediata e a eficiência de custos decorrente da automação e dispensa de intermediários.

Por fim, é notória a importância que a CVM e o Banco Central regulamentem a tokenização de ativos imobiliários. O mercado imobiliário global é imenso, com valor estimado em US$ 280 trilhões. A tokenização dará acesso, fluidez, liquidez e amplo acesso a pequenos investidores a este mercado.

Confira na íntegra: Provimento nº 38/2021 e Regulamento da Propriedade Digital V0.5.