Por Eduardo Coelho
Advogado. Sócio do Coelho & Dalle Advogados. Mestrando em Direito pela University of Pennsylvania
Ao longo da história, o desenvolvimento econômico e social brasileiro ocorreu acentuadamente em poucos centros, seja por sua vocação geoeconômica, seja pela concentração do poder político.
Nas últimas décadas, a redistribuição da riqueza e o incentivo para a formação de outros polos de desenvolvimento têm sido a marca de diversas políticas (ao menos no discurso), mas que, até hoje, trouxeram resultados ainda muito tímidos.
Vários são os motivos, mas poucos se destacam como fatores preponderantes para o nível de desigualdade encontrado em nosso país. Nesta breve reflexão vamos abordar a estrutura de estado – o modelo federativo adotado pelo Constituinte de 1988 – como uma grande mazela, que também contribui para o problema.
Há divergências sobre a origem do federalismo, existindo evidências de que remonta ao Império Romano, passando por Johannes Althusius (séculos XVI e XVII), John Calhoun (século XIX) até os Federalist Papers (1787-1788)¸ atribuídos a Alexander Hamilton, James Madison e outros. Apesar do dissenso sobre a sua concepção), a Constituição dos Estados Unidos, em vigor desde 1789, é o primeiro exemplo moderno da prática do modelo.
A federação americana veio depois de uma experiência confederativa não exitosa, sem poder central, em que os estados confederados, antigas colônias britânicas recém-independentes, tinham grande autonomia, mas sem articulação entre si. Qualquer deliberação relevante dependia de aprovação unânime dos confederados, o que dificilmente acontecia, já que alguns estados sequer enviavam representantes para as convenções.
Constatada a ineficácia desta estrutura, em 1787, chegou-se a um modelo em que os estados mantiveram certa autonomia, mas passaram a ser articulados por um governo central e tripartição de poderes. Assim, eles possuem competência quase exclusiva em matérias como direito criminal, direito civil, tributário, trabalhista, dentre outros. Por isso, o Direito, nos Estados Unidos, é uma prática estadual, seja na concepção das leis, em sua aplicação ou na vida forense. Ou seja: cada estado possui o seu Código Penal e sua “legislação”, formada não apenas pelas leis, mas por meio dos precedentes (estes vinculantes apenas dentro da respectiva jurisdição – o estado em questão), uma das características do Common Law. Não há obrigatoriedade de vinculação entre as decisões dos estados (o que reflete em parte a autonomia de que falamos), podendo haver referências apenas para fins de persuasão, mas sem qualquer efeito vinculante.
Inúmeros escritórios de advocacia estabelecem unidades em diversos estados em função da especificidade do direito local. E mais: para exercerem a advocacia, os graduados em direito devem ser aprovados pelo BAR de cada estado, a partir de uma prova conhecidamente rigorosa. Consequência disso é que a imensa maioria dos advogados são especialistas e licenciados para advogar em apenas um estado.
Ao contrário do Brasil, em que se pode, desde o Rio Grande do Sul, opinar sobre um assunto ocorrido em Roraima, a existência de uma forte legislação local impõe essa realidade e, invariavelmente, contribui para a distribuição do desenvolvimento de mercados locais. Essa dinâmica também aparece em outros setores da economia, já que todos são regulados pela lei. Há, portanto, uma descentralização do conhecimento e da riqueza. A autonomia dos estados se traduz efetivamente em desenvolvimento local.
No Brasil, a noção do federalismo apareceu já na Constituição de 1891, sendo repetida até o modelo adotado em 1988. Nesta, os constituintes incluíram características próprias que destoam da experiência constitucional americana.
Justifica-se o termo “destoar” para que se tenha em mente que o federalismo americano nasceu de uma construção histórica, pautada nas necessidades da época. Pegar um modelo com fundamento e construção próprios e mal adaptá-lo, como feito no Brasil, trouxe resultados catastróficos.
Um exemplo de distorção é a inclusão do município como unidade da federação. Em síntese, o município não possui elementos mínimos de autonomia, soberania e elementos estruturais, para justificar sua “opção” pelo modelo federativo.
Não há, na estrutura de poder dos municípios, tripartição de poderes, eis que carece de um Poder Judiciário, bem como de um legislativo bicameral, cuja representação (povo e estados) reflete a exata noção formadora do federalismo americano, sendo este último aspecto fruto dos embates havidos entre os estados mais e menos populosos da época.
Some-se a isso a concentração exacerbada de poderes na União Federal, seja na esfera legislativa ou em matéria orçamentária, com a concentração de recursos e distribuição destes feita de forma a prejudicar a distribuição ideal entre os estados. O que retira a possibilidade prática de autogestão dos estados, cria um séquito de estados-pedintes em Brasília, ávidos por recursos viabilizados através de convênios ou outras formas de transferência constitucionalmente previstas.
Esta peregrinação a Brasília dificulta a chegada do dinheiro a obras e serviços vitais para a população, aumenta a burocracia e, consequentemente, diminui a eficiência do gasto público, além de favorecer práticas corruptas.
Não há dúvidas de que quando os recursos são administrados por menos agentes, quando o dinheiro percorre caminhos mais curtos, mas com mecanismos de controle já conhecidos por todos, a probabilidade do proveito, pela população, de serviços públicos dotados de mais qualidade, aumenta consideravelmente. A total ausência – ou restrição – de autonomia dos estados ocasiona a concentração do desenvolvimento econômico e social em pouquíssimas localidades, deixando a maior parte do país praticamente renegada à própria sorte.
Chamar de federalismo o que temos no Brasil distorce o conceito construído com bases históricas sólidas e bem explicadas.
Artigo publicado no Correio Braziliense em 22 de dezembro de 2018