Hipoteca posterior prevalece sobre promessa de compra e venda de imóvel comercial sem registro

Por: Isabela Souto

Imagine pagar por um imóvel, assinar contrato, tomar posse e acreditar ser o legítimo proprietário e descobrir, anos depois, que perdeu tudo porque nunca levou o contrato ao cartório.

Foi exatamente isso que aconteceu com um casal que, em 2007, adquiriu um imóvel comercial por meio de um contrato particular de promessa de compra e venda e embora tenham pago o preço e formalizado o negócio com a então proprietária, deixaram de registrar o contrato no cartório de registro de imóveis e esse descuido trouxe consequências extremamente danosas.

Em 2009, a antiga proprietária, que ainda constava como titular do imóvel no cartório, portanto, ainda podia dispor dele perante terceiros, ofereceu o bem como garantia hipotecária a uma imobiliária, em troca de crédito.  A imobiliária, sem conhecimento da venda anterior e agindo de boa-fé, registrou a hipoteca e, diante do inadimplemento da dívida, promoveu a penhora do imóvel.

O caso foi objeto de análise no processo nº 0321873-93.2018.8.24.0038 (aqui cabe inserir o número do recurso no STJ), julgado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a relatoria do ministro Antônio Carlos Ferreira, que confirmou a validade da penhora, ressaltando que, sem o devido registro, o contrato de promessa de compra e venda é ineficaz perante terceiros de boa-fé.

Em análise a decisão, observa-se que dois princípios foram fundamentais para o deslinde do caso. O primeiro é o princípio da fé pública registral, que assegura a terceiros a possibilidade de confiar na veracidade e legitimidade das informações constantes no registro de imóveis. O segundo é o princípio da oponibilidade, segundo o qual apenas os atos devidamente registrados podem produzir efeitos erga omnes, ou seja, serem oponíveis a terceiros. Assim, a proteção da boa-fé é conferida ao terceiro registral, sendo no presente caso a imobiliária, e não à compradora, que não formalizou seu direito por meio do registro.

Esse caso escancara a importância do registro imobiliário no direito brasileiro. A compra e venda de imóveis só se consolida com o devido registro na matrícula, antes disso, o comprador detém apenas um direito pessoal, que vincula as partes contratantes, mas não é oponível a terceiros. Assim, mesmo tendo vendido o imóvel e recebido o pagamento, a vendedora conseguiu hipotecar o bem porque, perante o cartório, ainda era a proprietária legal. Já a imobiliária, ao confiar na informação oficial do registro, agiu de boa-fé e teve seu direito protegido.

Ainda, de acordo com pesquisa divulgada em 2023, pelo jornal Folha de São Paulo, o cenário brasileiro é tão preocupante quanto o caso analisado. Estima-se que aproximadamente 50% dos imóveis urbanos no Brasil não possuam registro formal no cartório de registro de imóveis, estando vinculados apenas a contratos particulares, escrituras não registradas ou, em alguns casos, sequer contam com qualquer documentação formal. Isso significa que milhões de brasileiros acreditam ser proprietários, mas, do ponto de vista jurídico, não detêm a titularidade plena do bem.

Esse contexto evidencia não apenas uma enorme fragilidade na segurança jurídica das transações imobiliárias, mas também o risco concreto da repetição de situações como a analisada no precedente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no qual a ausência de registro levou efetivamente à perda do imóvel pelos compradores. Por isso, a lição é clara: no Brasil, quem não registra, não é dono. O contrato, por si só, não basta, é o registro que transforma uma promessa em um direito real, com eficácia contra todos. Ignorar esse detalhe pode custar o próprio patrimônio. Esse precedente do STJ não só reafirma a centralidade da publicidade registral no sistema jurídico imobiliário, como também serve de alerta a compradores desatentos e profissionais do ramo: a formalidade protege, e a falta dela cobra caro.

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